Adriana Santiago[1]
GUERRA, Josenildo Luiz. O nascimento do jornalismo moderno. Uma discussão sobre as
competências profissionais, a função e os usos da informação jornalística.
Núcleo de Jornalismo, XXVI Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Belo
Horizonte/MG, 2003.
O artigo ‘O nascimento do jornalismo
moderno’, de Josenildo Guerra, professor da Universidade Federal de Sergipe e
um dos pesquisadores respeitados na nova geração da pesquisa em Jornalismo do
país, é muito mais do que o subtítulo aponta: uma discussão sobre as
competências profissionais, a função e os usos da informação jornalística. Escrito
quando ainda era doutorando no Programa de Pós-Graduação e Cultura
Contemporâneas - de onde nós o resenhamos -, é hoje referência no que se ousa chamar
de Teoria do Jornalismo e demarca para os pesquisadores ulteriores uma data
para iniciar os estudos na área. ‘Anos-luz’ do ultrapassado marco da prensa de
Gutemberg, Josenildo baliza um início para as nossas reflexões de pesquisa: o Iluminismo.
A época é bem defendida por ele como a da consolidação da concepção moderna do
jornalismo, mercantil e profissional.
Esta é a riqueza do artigo. Para o autor, o
Iluminismo é a época em que o protagonismo do indivíduo aconteceu, pois
conquistou-se autonomia diante de qualquer esfera de poder, em virtude de uma
faculdade humana universal: a razão. Ou seja, quando o ser humano comum
percebeu-se parte da sociedade, a partir do acesso à educação e à leitura.
Assim, a concepção hegemônica de jornalismo nasce com base em três pilares
iluministas: individualidade, razão e emancipação. Esse ambiente de grande
efervescência cultural, afirma Guerra, produzirá as grandes matrizes de
pensamento que vão estar na base da formação da atividade jornalística. E
conclui que o jornalismo moderno tem suas bases construídas neste século XIX,
quando surgiu o ideal da liberdade de expressão.
Historicizadas as etapas iniciais, com suas diferenciações
construídas sobre objetividade e opinião, é possível compreender, a partir do
texto, que o trabalho jornalístico consiste na realização de um percurso
interpretativo, no qual se parte de uma informação inicial, levanta-se outras
no decorrer do processo e chega-se ao final em que se elabora a notícia, com os
dados apurados de maior relevância. Ou seja, é o sentido de mediação, de
elaboração de uma interpretação sobre o acontecimento próprio e profissional, qualquer
que seja o gênero jornalístico. O valor da pesquisa de Guerra é buscar entender
o jornalismo a partir de sua prática histórica e seu reconhecimento gradativo por
parte da sociedade em prestigiá-lo como fonte de credibilidade e, desta forma,
configurá-lo como um ofício.
Neste desenvolvimento histórico, Guerra sugere uma
explicação para a natureza das exigências relativas às competências cognitiva,
discursiva e de conduta dos profissionais. Aponta, assim, cinco reflexões
importantes: a mediação jornalística[2] é
constituída de dois aspectos complementares - a função e o uso da informação; a
função consiste em cumprir a obrigação com o factual (função mediadora do
jornalismo); a verdade se revela como parâmetro de qualidade da informação; somente
a informação verdadeira é capaz de materializar a mediação; e, a expectativa de
uso é uma condição necessária à manutenção do contrato de leitura, porque cria
o vínculo entre a audiência e as organizações.
O jornalismo, para o autor, além de reportar os
fatos cumprindo a função mediadora elementar, seleciona-os em decorrência da
expectativa alimentada pelos indivíduos, expectativa determinada pelo uso que
vão fazer das informações disponibilizadas. A expectativa de uso expressa na
forma de valores-notícias, que são atributos extraídos de uma presumida
expectativa de uso do produto por parte dos indivíduos. Uma relação de troca
simbiótica subjetiva entre jornalistas e sociedade. Assim, nos idos do século
XVIII, o jornalismo revela sua essência em operar uma mediação entre os
indivíduos e a realidade. Em ambas as matrizes do jornalismo, opinião e informação,
afirma que a função mediadora do jornalismo não se altera.
Guerra aponta, neste percurso interpretativo, três necessidades
profissionais: a competência cognitiva, relativa à capacidade de conhecer os
fatos em questão e aplicar os critérios de relevância adequados; a competência
de conduta, relativa à capacidade de verificação e certificação da verdade dos
fatos (a objetividade) e à capacidade de manter-se isento no trabalho,
independentemente dos atores em disputa
(a neutralidade); e a competência discursiva, relativa à capacidade de traduzir
o conhecimento obtido em discurso noticioso. Guerra afirma que estas são
resultado de conceitos que foram sendo incorporados ao ideal da atividade e
constituíram, a partir daí, parâmetros de realização do trabalho. A atividade
se moldou e conquistou um espaço institucional, o autor chama este processo de
institucionalização da atividade jornalística.
O século XIX foi, para o autor, o período em que a
separação entre fato e opinião torna-se um paradigma, principalmente nos
Estados Unidos. O paradigma da objetividade. Caracteriza-se pela separação
entre fato e opinião, fato e emoção. O status
da opinião cai. Michael Schudson caracteriza com detalhes essas duas
modalidades de jornalismo, que se definem mais nitidamente, nos EUA, na última
década do século XIX: um movido pelo ideal da “estória”, outro, pelo ideal da
“informação”. O “ideal da estória” está para a modalidade do fait divers; o “ideal da informação”
para a modalidade noticiosa.
Com base em Schudson, Guerra aponta três razões para
justificar a força com a qual este paradigma atuou na definição moderna do
jornalismo: econômica com um viés político (aumentar venda de anúncios,
credibilidade com leitores; manter leitores, alinhar-se a outras áreas
técnicas, alinhar-se discursivamente com a tendência do estilo racional e
sóbrio); indivíduos que passam a acolher
os novos produtos; e o poder cognitivo dos indivíduos (não acreditam mais em
explicações “divinas” e têm a liberdade para decidir sua orientação política). O
jornalismo vai orientar-se conforme as diretrizes desse modelo de sociedade,
democrático e capitalista.
Os dilemas
enfrentados pela instituição jornalística, destaca Guerra, estão na raiz da sua
origem, seja na inspiração iluminista ou na liberal, e guiaram os padrões
éticos do jornalismo até os dias atuais. Por exemplo, quando ainda se fala de
verdade no código deontológico[3], é
um resultado destas construções discursivas que ainda hoje recusam a
interpretação. Assim, Guerra aponta que esses dilemas irão se revelar em duas
esferas principais: princípios que irão regular socialmente a atividade e a
lógica interna do trabalho. Assim a função do repórter vai provocar uma maior
especialização de duas competências profissionais: a cognitiva e a de conduta.
O profissional constrói internamente uma memória dos acontecimentos, mas como a
noção de objetividade em questão significa uma atenção restrita aos fatos,
tornava a cobertura menos complexa de ser feita. Modelo para a formação de uma
rotina de produção cada vez mais voltada para procedimentos de objetividade,
como já alertava Gaye Tuchman, em 1972.
Contudo, o que
vemos hoje é uma disputa de forças. De um lado podemos colocar uma força que quer
negar a função mediadora do jornalismo apontada aqui por Guerra contra uma
outra que referenda a mediação jornalística. Do lado que quer negar, podemos
colocar alguns que superestimam essa interatividade, como as odes ao jornalismo
cidadão (Gillmor, 2005) ou aos efeitos da liberação do polo de emissão (LEMOS,
2002) que dá ao usuário de internet toda
a capacidade de selecionar suas informações. Do outro, uma força a qual me
alio, que reafirma, que agora, mais do nunca, existe a necessidade do
profissional jornalista em sua função seminal de selecionar os fatos para o seu
público específico (BRUNS,2007) diante desta superabundância de informações[4].
Mais sobre o autor
Referências
BRUNS, Axel. Gatewatching: collaborative on-line news production. New
York/ Washington: Peter Lang, 2005.
GILLMOR, Dan. Nós, os Media.
Trad. Saul Barata. Lisboa: Ed. Presença,2005.
GUERRA, Josenildo L. O percurso interpretativo na produção da
notícia. São
Cristóvão: Editora UFS e Fundação Oviêdo Teixeira, 2008
LEMOS, A. A Arte da Vida: Diários
Pessoais e Webcams na Internet . In: Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, 25. 2002, Salvador. Anais. São Paulo: Intercom, 2002. CD-ROM.
TRAQUINA, Nelson. Teorias
do jornalismo. Florianópolis. Insular. 2005.
TUCHMAN, Gaye.
A objetividade como ritual estratégico: uma análise das noções de
objetividade dos jornalistas. In: TRAQUINA, Nelson. (Org.). Jornalismo:
Questões, Teorias e “Estórias”. Lisboa: Vega, 1993.
_______________. Making
News: a study in the construction of reality. New York. Free Press. 1978
WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. Lisboa:
Editorial Presença, 2003.
[1] Adriana Santiago é
doutoranda no Programa Comunicação e Cultura Contemporânea (Poscom) da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professora da Universidade de Fortaleza
(Unifor).
[2] O modelo de mediação de
Josenildo Guerra foi explicado no livro da tese, em 2008. A partir do tripé
trabalho-objetivo-resultado, a atividade jornalística, através dos recursos
técnicos que dispõe para reportar os fatos, produz notícias como fruto do seu
trabalho, observando os conceitos de verdade e relevância a fim de atingir “um
índice de eficiência e eficácia capaz de garantir órgãos de informação uma
credibilidade que os sustente, literalmente”. (GUERRA, 2008, P. 116-117)
[3] Cap. II. Da conduta
profissional do jornalista. Art. 4º O compromisso fundamental do jornalista é
com a verdade no relato dos fatos, deve pautar seu trabalho na precisa apuração
dos acontecimentos e na sua correta divulgação. (Código de Ética dos
Jornalistas. Federação Nacional dos Jornalistas. Vitória, agosto de 2007)
[4] O conceito superabundância
de informações foi citado por Tuchman (1978, p.45) ao tratar do papel
selecionador dos jornalistas e dos critérios de noticiabilidade, processo que
Wolf (2005) chama de newsmaking.
Este texto foi originalmente publicado no site do Núcleo de Estudos em Jornalismo (NJOR), da FACOM/UFBA, que está fora do ar.
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