quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Quando o jornalismo começa a ser jornalismo


Adriana Santiago[1]
GUERRA, Josenildo Luiz. O nascimento do jornalismo moderno. Uma discussão sobre as competências profissionais, a função e os usos da informação jornalística. Núcleo de Jornalismo, XXVI Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Belo Horizonte/MG, 2003.
            O artigo ‘O nascimento do jornalismo moderno’, de Josenildo Guerra, professor da Universidade Federal de Sergipe e um dos pesquisadores respeitados na nova geração da pesquisa em Jornalismo do país, é muito mais do que o subtítulo aponta: uma discussão sobre as competências profissionais, a função e os usos da informação jornalística. Escrito quando ainda era doutorando no Programa de Pós-Graduação e Cultura Contemporâneas - de onde nós o resenhamos -, é hoje referência no que se ousa chamar de Teoria do Jornalismo e demarca para os pesquisadores ulteriores uma data para iniciar os estudos na área. ‘Anos-luz’ do ultrapassado marco da prensa de Gutemberg, Josenildo baliza um início para as nossas reflexões de pesquisa: o Iluminismo. A época é bem defendida por ele como a da consolidação da concepção moderna do jornalismo, mercantil e profissional.
Esta é a riqueza do artigo. Para o autor, o Iluminismo é a época em que o protagonismo do indivíduo aconteceu, pois conquistou-se autonomia diante de qualquer esfera de poder, em virtude de uma faculdade humana universal: a razão. Ou seja, quando o ser humano comum percebeu-se parte da sociedade, a partir do acesso à educação e à leitura. Assim, a concepção hegemônica de jornalismo nasce com base em três pilares iluministas: individualidade, razão e emancipação. Esse ambiente de grande efervescência cultural, afirma Guerra, produzirá as grandes matrizes de pensamento que vão estar na base da formação da atividade jornalística. E conclui que o jornalismo moderno tem suas bases construídas neste século XIX, quando surgiu o ideal da liberdade de expressão.
Historicizadas as etapas iniciais, com suas diferenciações construídas sobre objetividade e opinião, é possível compreender, a partir do texto, que o trabalho jornalístico consiste na realização de um percurso interpretativo, no qual se parte de uma informação inicial, levanta-se outras no decorrer do processo e chega-se ao final em que se elabora a notícia, com os dados apurados de maior relevância. Ou seja, é o sentido de mediação, de elaboração de uma interpretação sobre o acontecimento próprio e profissional, qualquer que seja o gênero jornalístico. O valor da pesquisa de Guerra é buscar entender o jornalismo a partir de sua prática histórica e seu reconhecimento gradativo por parte da sociedade em prestigiá-lo como fonte de credibilidade e, desta forma, configurá-lo como um ofício.
Neste desenvolvimento histórico, Guerra sugere uma explicação para a natureza das exigências relativas às competências cognitiva, discursiva e de conduta dos profissionais. Aponta, assim, cinco reflexões importantes: a mediação jornalística[2] é constituída de dois aspectos complementares - a função e o uso da informação; a função consiste em cumprir a obrigação com o factual (função mediadora do jornalismo); a verdade se revela como parâmetro de qualidade da informação; somente a informação verdadeira é capaz de materializar a mediação; e, a expectativa de uso é uma condição necessária à manutenção do contrato de leitura, porque cria o vínculo entre a audiência e as organizações.
O jornalismo, para o autor, além de reportar os fatos cumprindo a função mediadora elementar, seleciona-os em decorrência da expectativa alimentada pelos indivíduos, expectativa determinada pelo uso que vão fazer das informações disponibilizadas. A expectativa de uso expressa na forma de valores-notícias, que são atributos extraídos de uma presumida expectativa de uso do produto por parte dos indivíduos. Uma relação de troca simbiótica subjetiva entre jornalistas e sociedade. Assim, nos idos do século XVIII, o jornalismo revela sua essência em operar uma mediação entre os indivíduos e a realidade. Em ambas as matrizes do jornalismo, opinião e informação, afirma que a função mediadora do jornalismo não se altera.
Guerra aponta, neste percurso interpretativo, três necessidades profissionais: a competência cognitiva, relativa à capacidade de conhecer os fatos em questão e aplicar os critérios de relevância adequados; a competência de conduta, relativa à capacidade de verificação e certificação da verdade dos fatos (a objetividade) e à capacidade de manter-se isento no trabalho, independentemente  dos atores em disputa (a neutralidade); e a competência discursiva, relativa à capacidade de traduzir o conhecimento obtido em discurso noticioso. Guerra afirma que estas são resultado de conceitos que foram sendo incorporados ao ideal da atividade e constituíram, a partir daí, parâmetros de realização do trabalho. A atividade se moldou e conquistou um espaço institucional, o autor chama este processo de institucionalização da atividade jornalística.
O século XIX foi, para o autor, o período em que a separação entre fato e opinião torna-se um paradigma, principalmente nos Estados Unidos. O paradigma da objetividade. Caracteriza-se pela separação entre fato e opinião, fato e emoção. O status da opinião cai. Michael Schudson caracteriza com detalhes essas duas modalidades de jornalismo, que se definem mais nitidamente, nos EUA, na última década do século XIX: um movido pelo ideal da “estória”, outro, pelo ideal da “informação”. O “ideal da estória” está para a modalidade do fait divers; o “ideal da informação” para a modalidade noticiosa.
Com base em Schudson, Guerra aponta três razões para justificar a força com a qual este paradigma atuou na definição moderna do jornalismo: econômica com um viés político (aumentar venda de anúncios, credibilidade com leitores; manter leitores, alinhar-se a outras áreas técnicas, alinhar-se discursivamente com a tendência do estilo racional e sóbrio);  indivíduos que passam a acolher os novos produtos; e o poder cognitivo dos indivíduos (não acreditam mais em explicações “divinas” e têm a liberdade para decidir sua orientação política). O jornalismo vai orientar-se conforme as diretrizes desse modelo de sociedade, democrático e capitalista.
Os dilemas enfrentados pela instituição jornalística, destaca Guerra, estão na raiz da sua origem, seja na inspiração iluminista ou na liberal, e guiaram os padrões éticos do jornalismo até os dias atuais. Por exemplo, quando ainda se fala de verdade no código deontológico[3], é um resultado destas construções discursivas que ainda hoje recusam a interpretação. Assim, Guerra aponta que esses dilemas irão se revelar em duas esferas principais: princípios que irão regular socialmente a atividade e a lógica interna do trabalho. Assim a função do repórter vai provocar uma maior especialização de duas competências profissionais: a cognitiva e a de conduta. O profissional constrói internamente uma memória dos acontecimentos, mas como a noção de objetividade em questão significa uma atenção restrita aos fatos, tornava a cobertura menos complexa de ser feita. Modelo para a formação de uma rotina de produção cada vez mais voltada para procedimentos de objetividade, como já alertava Gaye Tuchman, em 1972.
Contudo, o que vemos hoje é uma disputa de forças. De um lado podemos colocar uma força que quer negar a função mediadora do jornalismo apontada aqui por Guerra contra uma outra que referenda a mediação jornalística. Do lado que quer negar, podemos colocar alguns que superestimam essa interatividade, como as odes ao jornalismo cidadão (Gillmor, 2005) ou aos efeitos da liberação do polo de emissão (LEMOS, 2002)  que dá ao usuário de internet toda a capacidade de selecionar suas informações. Do outro, uma força a qual me alio, que reafirma, que agora, mais do nunca, existe a necessidade do profissional jornalista em sua função seminal de selecionar os fatos para o seu público específico (BRUNS,2007) diante desta superabundância de informações[4].
Mais sobre o autor
Professor Associado da Universidade Federal de Sergipe, com atuação no curso de Jornalismo e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Tem realizado pesquisas em teoria do jornalismo, gestão do processo jornalístico e gestão da qualidade editorial em jornalismo, construindo interfaces com as áreas de tecnologias de informação e gestão do conhecimento. Está trabalhando no desenvolvimento de metodologias de pesquisa aplicada (produção experimental monitorada) e de ferramentas de suporte ao trabalho jornalístico e controle de qualidade (sistemas de informação). A tese defendida em 2003 virou referência nos estudos de jornalismo. “O percurso interpretativo na produção da notícia: verdade e relevância como parâmetros de qualidade jornalística”.
Referências
BRUNS, Axel. Gatewatching: collaborative on-line news production. New York/ Washington: Peter Lang, 2005.
GILLMOR, Dan. Nós, os Media. Trad. Saul Barata. Lisboa: Ed. Presença,2005.
GUERRA, Josenildo L. O percurso interpretativo na produção da notícia. São Cristóvão: Editora UFS e Fundação Oviêdo Teixeira, 2008
LEMOS, A. A Arte da Vida: Diários Pessoais e Webcams na Internet . In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 25. 2002, Salvador. Anais. São Paulo: Intercom, 2002. CD-ROM.
TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo. Florianópolis. Insular. 2005.
TUCHMAN, Gaye. A objetividade como ritual estratégico: uma análise das noções de objetividade dos jornalistas. In: TRAQUINA, Nelson. (Org.). Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias”. Lisboa: Vega, 1993.
_______________. Making News: a study in the construction of reality. New York. Free Press. 1978
WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. Lisboa: Editorial Presença, 2003.




[1] Adriana Santiago é doutoranda no Programa Comunicação e Cultura Contemporânea (Poscom) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professora da Universidade de Fortaleza (Unifor).
[2] O modelo de mediação de Josenildo Guerra foi explicado no livro da tese, em 2008. A partir do tripé trabalho-objetivo-resultado, a atividade jornalística, através dos recursos técnicos que dispõe para reportar os fatos, produz notícias como fruto do seu trabalho, observando os conceitos de verdade e relevância a fim de atingir “um índice de eficiência e eficácia capaz de garantir órgãos de informação uma credibilidade que os sustente, literalmente”.  (GUERRA, 2008, P. 116-117)
[3] Cap. II. Da conduta profissional do jornalista. Art. 4º O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, deve pautar seu trabalho na precisa apuração dos acontecimentos e na sua correta divulgação. (Código de Ética dos Jornalistas. Federação Nacional dos Jornalistas. Vitória, agosto de 2007)
[4] O conceito superabundância de informações foi citado por Tuchman (1978, p.45) ao tratar do papel selecionador dos jornalistas e dos critérios de noticiabilidade, processo que Wolf (2005) chama de newsmaking.


Este texto foi originalmente publicado no site do Núcleo de Estudos em Jornalismo (NJOR), da FACOM/UFBA, que está fora do ar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Oi, seja bem-vindo! Eu estou moderando os comentários para evitar polêmicas desnecessárias. O objetivo do blog é acadêmico e pretendo discutir neste nível. Mas estou muito feliz com sua interação!