quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Uma função democrática para ‘salvar’ o jornalismo


Adriana Santiago*
Resenha PósCOM
SCHUDSON, Michael. News and Democratic Society: Past, Present, and Future. The Institute of Advanced Studies in Culture. Disponível em: http://www.iasc-culture.org/eNews/2009_10/Schudson_LO.pdf  (artigo do livro Why Democracies Need an Unlovable Press, 2008).

Michael Schudson tem uma posição controvertida para os padrões pragmáticos e neoliberais dos seus pares estadunidenses e, porque não dizer, romântica do jornalismo. Ele acredita que o jornalismo tem funções, tem um papel social importante. Neste ensaio de 2008, chama a atenção pela defesa da função democrática inerente ao jornalismo, como veremos logo a seguir, mas julgo importante levar em consideração o contexto em que escreve. Ele estava iniciando uma pesquisa que publicaria em 2009 e que causaria grande controvérsia nos Estados Unidos. O relatório "A reconstrução do jornalismo americano” elaborado juntamente com o jornalista Leonard Downie Jr., editor-executivo do Washington Post por 17 anos, recomenda que jornais se transformem em empresas não lucrativas, recebendo recursos até do governo, o que chocou os meios de comunicação estadunidenses que, normalmente, satanizam a intervenção do Estado.


Schudson e Downie Jr. propõe transformar as empresas jornalísticas em entidades de interesse público, não-lucrativas, com uma cobrança de impostos revista pelo governo, com isso poderiam até aceitar doações de fundações, entidades filantrópicas ou mesmo dinheiro público, desde que fosse estabelecida uma fórmula para manter a isenção e imparcialidade das coberturas. Ou seja, o modelo de negócio deveria ser modificado. Com esta perspectiva, infere-se que o artigo em resenha já tenha indícios dessa abordagem democrática de Schudson em busca de novos modelos a serem testados.

Talvez, exatamente porque já imaginasse uma virada substancial do jornalismo, comece o artigo em resenha afirmando que “Democracia e jornalismo não são a mesma coisa”, levantando um rol de estados sem garantias democráticas onde continuou existindo jornalismo. Se o jornalismo pode existir sem democracia, o que Schudson defende neste artigo é que, na democracia, o jornalismo prospera e a alimenta. “Onde há democracia ou onde há forças preparadas para realizá-la, o jornalismo pode fornecer inúmeros serviços para ajudar a estabelecer ou manter um governo representativo.”

Schudson defende, assim, que existam seis funções principais do jornalismo nas sociedades democráticas onde as notícias poderiam servir para fortalecer uma democracia, e uma sétima, geralmente ignorada, que a notícia deve servir para promover esta democracia. São elas: informação, onde os meios de comunicação podem fornecer informações justas e completas para os cidadãos fazerem boas escolhas políticas; investigação, quando os jornalistas investigam fontes importantes do governo; análise, quando os meios de comunicação fornecem estruturas coerentes de interpretação para ajudar os cidadãos a compreender um mundo complexo; a empatia social, quando informa as pessoas sobre iguais para que possam vir a apreciar os pontos de vista e as vidas de outras pessoas, especialmente os menos favorecidos; fórum público, quando o jornalismo proporciona um fórum para o diálogo entre os cidadãos (esfera pública); e, mobilização, quando os meios agem como defensores de determinados programas políticos e perspectivas e mobiliza as pessoas para agir em apoio a esses programas.

Estas diferentes funções são, por vezes, contraditórias, alerta o autor. Em particular, a mobilização ou função de defesa ou ataque pode comprometer a confiabilidade das funções de informação e investigação. Organizações de notícias diferentes podem enfatizar uma função mais do que outra. Porém, afirma que um órgão de notícias único, particularmente um jornal, pode servir a democracia em todas estas formas de uma só vez.

Por fim, existe a função pouco usada pelos meios, que é a promoção da democracia. Na verdade, ele usa o termo democracia liberal[1].  Schudson, neste artigo, defende que esta função exige um papel mais democrático e não populista para o jornalista. Lembra que, nas democracias representativas, através de constituições que criam regras para a proteção dos direitos das minorias, é necessária uma democracia liberal e transparente.

Com argumentos pautados em uma construção histórica do passado e análise dos casos presentes, o autor começa a pensar o futuro, que muda a dimensão do jornalismo, mas sem o pessimismo típico de alguns teóricos com o fim dos jornais. Admite que alguns veículos não vão sobreviver, mas Schudson é até otimista porque aposta em uma reconfiguração do modelo, e não na sua extinção. Indício claro da virada do negócio e do modo de fazer jornalismo prestes a propor.

Para ele, por mais que existam boas experiências na web/blogosfera não há nenhuma organização de recolha de notícias on-line que substitua os meios hoje instituídos pela grande imprensa e a produção destas experiências são, na maioria, baseadas em impressões sobre a produção de grandes jornais (New York Times, Washington Post, ou outros) ou de TV que são baseadas em organização de mídia ainda maiores (CNN ou BBC ou outros). Assim, o autor entende que: “Os esforços desses jornais não podem ser dispensados, embora o modelo econômico que os sustenta tem de ser redesenhado”.

Web: fórum público e mobilização

É importante salientar ainda que Schudson destaca a chegada da Web 2.0 e o crescimento da blogosfera, pois, com elas se destacam as funções de fórum público e de mobilização do jornalismo. Para ele, elas têm crescido muito mais em relação às funções de informação, de investigação e de empatia social. A web cristaliza a função de fórum público da forma mais ampla e profunda. “Sua virtude não é individual, mas social, a virtude da interação, de conversa, de uma sociabilidade fácil e agradável democrática”.  A Web, assim, também ajudaria a instituir a sétima função ainda incipiente do jornalismo para a democracia, em que a divisão entre o jornalista e a audiência para o jornalismo desaparece.

Um ponto a se pensar para o cenário do futuro é que a função de informar fica distribuída entre diferentes organizações jornalísticas e não jornalísticas, mas que não deve ser temido ou afastado, mas aproveitado, recomenda. Esta função de informar, destaca, se relaciona com a função de investigação e com o papel social que o jornalismo tem, por vezes, oferecido à democracia.
“Devemos estar abertos às suas possibilidades e reconhecer que a falta de regras deste sistema descentralizado e multivocal informativo pode ser, entre outros, o maior bem da democracia” (SCHUDSON, 2007)

Schudson chama a atenção para os perigos do desequilíbrio das funções, como o excesso de investigação se transformar em um "o espírito de investigação e espionagem", como os franceses criticavam os repórteres americanos. Para ele, há duas vertentes a respeito da investigação para a democracia, uma é que resulta em publicidade contra os líderes poderosos e outro se concentra em como notícias inspira a reflexão, o debate, o engajamento e entre as elites atentas. “Os jornalistas, portanto, tem a obrigação de buscar afirmativamente o texto por trás do texto, a história por trás da história”, preconiza.

O comprometimento necessário para a investigação e análise também é considerado, pois o autor critica a pouca análise nos impressos e nos meios gratuitos da web. Condena o uso instrumental da função da empatia social, cada vez mais utilizada para abiscoitar audiência do que para levantar debates mais profundos. Outro artificio é o que chama de "hipótese da vivacidade" (Iyengar & Kinder, 1987), testada em laboratório, frisa, que diz: “quanto o relato for mais vívido, dramático, ou emocionalmente convincente, é quando mais o povo ou imagem estiverem expostos no texto, mais ele vai influenciar a audiência, afetando as suas opiniões ou suportar mais tempo em suas memórias”.

Desta forma, Schudson chama atenção para a perversa instrumentalização das funções que hoje acontece no jornalismo em crise, mas aponta para um horizonte de mudanças que passam por novos modelos de negócio reconfigurados e caminha para um modelo mais próximo da democracia, como acredita ser a função inerente do campo. Um modelo de jornalista como advogado pode servir ao interesse público, mas a análise dos fatos, o levantamento de possibilidade e o incentivar da interação nos fóruns públicos pode ainda mais para empoderar o cidadão e fortalecer a democracia. Assim, volto a lembrar a pesquisa posterior, quando Schudson propõe uma saída através de um jornalismo não-lucrativo, talvez somente assim seria possível a isenção e a liberdade para exercer as funções.

Sobre o autor
Michael Schudson fez mestrado e doutorado em sociologia pela Universidade de Harvard. Ensinou na Universidade de Chicago (1976-1980) e na Universidade da Califórnia de San Diego (1980-2009). A partir de 2005, ele dividiu o seu tempo entre UCSD com a Escola de Pós-Graduação de Jornalismo da Universidade de Columbia, até 2009, quando ficou integralmente. É referência para vários pesquisadores de jornalismo no Brasil nos conceitos de função social e democracia. Entre as obras mais conhecidas entre os brasileiros estão os livros Discovering the news (1978), traduzido recentemente na coleção Clássicos da Comunicação Social, da Editora Vozes; The power of news (1995), The good citizen (1998) e The sociology of news (2003). Tem sido parceiro do Museu Guggenheim, pesquisador residente no Centro de Estudos Avançados em Ciências Comportamentais de Palo Alto e ‘pesquisador-gênio’ da Fundação MacArthur. Desde 2012 é membro da Academia Americana de Artes e Ciências.

*Adriana Santiago é doutoranda do Pos-Com Ufba e professora da Universidade de Fortaleza (Unifor)

Referência bibliográfica
DOWNIE.Jr., Leonard; SCHUDSON, Michael. The Reconstruction of American Journalism. Columbia University’s Graduate School of Journalism. NY. October 2009. Acessado em http://www.journalism.columbia.edu/system/documents/1/original/Reconstruction_of_Journalism.pdf
IYENGAR, Shanto; KINDER, Donald R. News that Matters: Television and American Opinion. University of Chicago Press Chicago, 1987.

Este texto foi originalmente publicado no site do Núcleo de Estudos em Jornalismo (NJOR), da FACOM/UFBA, que está fora do ar.




[1] A democracia liberal vem do ideal iluminista que tem como princípio a manutenção da soberania popular, que garante ao povo, sobretudo, a escolha de seus representantes políticos, a existência de instituições representativas e direitos políticos e civis. O Estado não interfere diretamente neste controle, que é feito pela própria dinâmica da sociedade.

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