terça-feira, 10 de novembro de 2015

Jornalismo, um gigante submetido e insubmisso


Adriana Santiago [1]
LAGE, Nilson. Ideologia e técnica da notícia. 4ª ed. rev. e ampl. Florianópolis: Insular, 2012. Série Jornalismo a Rigor, Vol. 5.

Nilson Lage (2012) afirma que a orientação ideológica na produção do Jornalismo moderno se relaciona com valores da classe burguesa em ascensão, como os da liberdade de expressão e de imprensa, somados ao imaginário de liberdade das empresas liberais. “A liberdade de expressão do pensamento somou-se, na luta contra a censura, às outras liberdades pretendidas no ideário burguês e o jornal tornou-se instrumento de luta ideológica, como jamais deixaria de ser” (LAGE, 2012, p.23). Assim, os jornais conceberam para si uma produção de conteúdo livre, porém foram recapturados pelos interesses comerciais que os sustentam, assim, a liberdade de produção noticiosa é uma fantasia e o jornalismo não passa de uma arena ideológica.

A primeira luta diz respeito aos princípios da imparcialidade, objetividade e veracidade, muitos caros à atividade jornalística, fadada a conviver com a subjetividade do profissional, da empresa jornalística e do momento histórico a qual pertence. Para tentar estabelecer uma teoria que dê conta desses desvios, Lage (2012) classifica filtros técnicos e ideológicos utilizados na atividade que garantem a sua sobrevivência e relacionamento com a verdade até os tempos atuais.

Ao demonstrar que não é possível fazer a distinção sobre os critérios de verdade, pois esta não existe fora de um contexto histórico de interesses e motivações, enumera técnicas de fazer jornal que responderam às necessidades criadas pelas mutações da sociedade e da atitude do público com o jornalismo industrial. “A reiteração ideológica teria que ser feita por outros meios, e estes foram supridos por novas formas de produção da informação” (LAGE, 2012, p.31). Daí enumera o sensacionalismo, a simplificação, o inimigo único, os critérios de aferição da verdade, o abandono consciente das interpretações e a proposta de uma linguagem transparente.

Se no início a notícia era artesanal e incorporava crenças e perspectivas individuais, ao se tornar um produto industrial passou ser um artigo de consumo, sujeito a acabamento padronizado e embalados conforme técnicas de marketing. “Impessoal, tende, nos meios de comunicação social de agora, a produzir-se de modo a eliminar aparentemente crenças e perspectivas. No entanto, a melhor técnica apenas oculta preconceitos e pontos de vista do grupo social dominante” (LAGE, 2012, p.45). Ou seja, o autor admite que a notícia aponta para um imediato concreto, um discurso elaborado de forma coletiva e industrial massificada de um bem simbólico.

Contudo, alerta que, ao se definir notícia como o relato de uma série de fatos a partir do fato mais importante, reduz-se a discussão ao que venha ser importante, um conceito abstrato e contextualizado historicamente. O modelo universal de construção do texto noticioso tem que se adaptar aos diferentes idiomas e às grades de referenciais de cada cultura ou mercado. Assim, pode-se afirmar a existência de várias formas de notícias, e porque não dizer de vários jornalismos. “A realidade é múltipla, simultânea. A língua, linear e sequencial” (LAGE, 2012, p. 85). Desta forma, essa seleção é, para Lage, um momento de técnica com constatação empírica, com critérios de avaliação formal, mas que também considera pressupostos ideológicos e fragmentos de conhecimento científico.

Na tentativa de pensar a notícia tecnicamente, Lage a classifica como axiomática, porque mostra, impõe, dispensando argumentos que se furtam à análise crítica; contextualizada em lugar no espaço, no tempo e no público; e munida de prestígio, que se respalda na confiabilidade do enunciador ou do veículo. Uma característica destacada é a estrutura em um sistema linguístico em que emissor e receptor se relacionam em um nível de poder. Lembrando que a produção da notícia privilegia a função referencial, eliminando-se todas as funções emotiva e conativa (JACKOBSON, 1974), destaca que a notícia tenta uma aparência de neutralidade, “cujo repertório tem apenas ideias estatísticas”, e tenta se inocentar como se a produção linguageira da notícia fosse desinteressada.

Contudo, a arena ideológica volta, neste ponto, a se manifestar a partir da análise dos recursos estilísticos do texto jornalístico. O autor traz à análise o processo criativo dos redatores ao se empenharem na melhor redação para suas notícias que se adaptam a ambientes solenes ou informais. “O “resmungo” é uma investigação da harmonia, do ritmo, dos acentos” (LAGE, 2012, p.60). Essa construção estilística passa pela nomeação neutra em torno dos fatos jornalísticos, a fim de amplificar o sentido ao maior número de pessoas. Ao operaram preferencialmente com palavras comuns, alimentam o sistema de trocas ideológicas e trazem, de maneira inevitável, implicações e conotações ao sentido. Transmitem, assim, juízos e estereótipos invocando, muitas vezes, a ambiguidade do mito como unidade do discurso e provocando uma duplicidade de entendimentos (BARTHES, 1975). A partir desta reflexão, é possível também entender as semelhanças das notícias em veículos concorrentes e jornalistas falando de si mesmos de forma tão similar.

Tais modelos estão prontos; sua aceitação é garantida. Por isso, são bastantes alguns pontos em comum para que se funde um reconhecimento. É por esse meio que se instaura a generalidade do particular e as notícias tornam-se exemplo de algo sobre o que há consenso ideológico” (LAGE, 2012, p.139)

Ao entender o texto como unidade linguística dotada de significação plena, divide entre ordem narrativa e expositiva. Sendo a primeira ordem articulada pelos verbos de ação e movimento, com interpretações profundas, vinculadas a estereótipos, antíteses e improbabilidades. A segunda, de construção lógica com assertivas determinantes ou comprovações, traz redundâncias documentais em textos de “alta comunicabilidade”, ou seja, que passíveis de serem compreendidos pelo máximo de receptores com repertórios diferentes.

Para explicar os seus critérios de avaliação técnica, em 1979 quando escreveu a primeira versão do livro, nominados posteriormente de critérios de noticiabilidade, o autor lança mão de atributos com base nos “impulsos psicológicos inatos”, que podem ser de agressividade, sexualidade, possessivismo e protetivismo, assim como métodos de sublimação, redução e desvio.

“Na indústria cultural, a agressividade encontra sua projeção mais comum na violência; a sexualidade, no erotismo ou pornografia [....] ; o possessivismo, no consumo e em representações de progresso [....], avaliado pelo acúmulo de bens ou índices quantificáveis. Ascensão em escala social, aquisição de padrões; o protetivismo, em certo sentimentalismo aplicado às crianças em geral, aos animais, aos povos primitivos e a sua natureza ou cultura selvagens” (LAGE, 2012, p. 87)

A partir destes atributos, classifica critérios técnicos em proximidade (cultural e geográfica), atualidade (‘transatualidade’ – referente ao não conhecido), identificação social (verticalização), intensidade (números e retórica); ineditismo (raridade, improbabilidade) e identificação humana (olimpianos de Edgard Morin ou celebridades).

Com ênfase no contexto, Lage avança numa investigação sobre a verdade nas notícias e novamente afirma que esta é uma abstração, pois existe somente como um parâmetro de qualidade. “Subjetivamente, existirá ainda como memória de um instante fugaz de uma descoberta ou revelação. Nessa memória e neste instante, residem a experiência da verdade” (LAGE, 2012, p.125). A palavra é polissêmica, autônoma e existe nos inconscientes em quadros mentais de grande intensidade, mas que são enganosos porque seus significados são variáveis de acordo com a instância de uso. Para ele, a verdade histórica é a que prevalece, pois devemos partir da materialidade do fato para a eventual condição de verdade.

Ao comparar o conhecimento científico, destaca que a ciência conquista poder a partir do momento em que sua acumulação de saberes tem uma práxis; permitindo, quando o objeto é novo no campo, inclusive, que o cientista crie uma realidade ilusória com base em critérios particulares para se fazer compreender. Esta realidade construída também pode ser vista na notícia, sem, contudo, ser encarada como fuga do valor da verdade. “Não há ciências reacionárias, mas usos historicamente reacionários das ciências” (LAGE, 2012, p.132).

Por fim, Lage fala sobre as tensões que permeiam a autonomia semântica da palavra verdade, salientando o “universo fundamentalmente humano” do código linguístico e o seu grau de competência para organizar o conhecimento. Neste momento, se torna pertinente trazer à discussão o pensamento de McLuhan sobre o homem tipográfico. “Dir-se-ia que a grande virtude da escrita é o poder de deter o veloz processo do pensamento para a contemplação e análises constantes. A escrita é a tradução audível para o visual. Em larga medida, constitui a especialização do pensamento” (MCLUHAN, 2000, p. 155)[2]. Lage segue a mesma linha, ao depositar no código linguístico suposições ideológicas da verdade, uma verdade como um acordo implícito na linguagem, mas que traz um legado da cultura e seus controles. Porém, afirma que é necessário delimitar a competência deste código linguístico ao utilizá-lo a partir da materialidade das coisas e fatos do mundo.

“Notícias são relatos de aparências codificadas pelo código semiológico (ou linguístico), pelas técnicas de nomeação, ordenação e seleção, por um estilo” (LAGE, 2012, p.138). Assim, se o jornalista seguir estas condições de conformidade será qualificado como correto e honesto, sua competência é medida pelo domínio dessas técnicas, contudo Lage alerta que essas técnicas dissimulam a relações de poder, pois todas as escolhas em torno delas estão sendo feitas dentro de um código cultural. As técnicas apenas tentam minimizar o desvio em relação aos valores do que é uma notícia ideal. “Os jornais, em suma, não têm saída: são veículos de ideologias práticas, mesquinharias. Mas têm saída: há neles indícios da realidade e rudimentos de filosofia prática, crítica militante, grandeza submetida, porém insubmissa” (LAGE, 2000, p.143)



[1]. Adriana Santiago, doutoranda e mestre pelo Programa de Comunicação e Culturas Contemporâneas (Poscom), da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professora da Universidade de Fortaleza (Unifor).
[2] MCLUHAN, Marshall .Visão, som e fúria. In LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 153-164

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