sábado, 23 de janeiro de 2016

Jornalismo até pode ser mercadoria, mas não é uma qualquer

                                                 
 Adriana Santiago [1]
         GENRO FILHO, Adelmo. O Segredo da Pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2012. 240p.
‘O Segredo da pirâmide’, de Adelmo Genro Filho, traz uma abordagem bem original sobre o jornalismo como forma de conhecimento. Intitula-se uma teoria marxista, mas não traz o pessimismo generalizado da Escola Crítica, embora considere a realidade histórico-social e suas subjetividades como dimensão real e ativa, assim como a objetivação como ponto fundamental nas relações práticas de produção. Para ele, distante dos frankfurtianos, nem toda a capacidade crítica acabou após a indústria cultural, o jornalismo não foi corrompido, ao contrário, foi construído junto com o sistema e dificilmente se aproximará ao ideal funcionalista dos primeiros estudos. Então, acerco-me de Genro em mais dois aspectos: primeiro o jornalismo não existe só para alguns ganharem dinheiro e prestígio; e, segundo, desempenha uma função importante na percepção social dos cidadãos.

Genro (2012) percebe o jornalismo como uma ‘forma social de conhecimento’ que foi historicamente construída embrenhada no capitalismo, mas que tem potencialidades além da lógica funcionalista dos modos de produção. Com base em Hegel e Lukács, afirma que o jornalismo é uma forma de conhecimento cristalizada no singular, portanto, o dito jornalismo informativo, pautado na objetividade, é “ideologicamente antiburguês”, improvável, mas politicamente possível.  Para o autor, o jornalismo é uma forma singular de observar a sociedade, uma espécie de conhecimento imoldável pelas caixas teóricas em voga. Ou seja, recomenda que é preciso abrir os horizontes de pensamento e pensar uma teoria própria. O ponto crucial é que a tese da “pirâmide invertida” quer ilustrar que a notícia caminha do ‘mais importante’ para o ‘menos importante’ e entende o lead como apreensão descritiva e sintética do aspecto singular do fato. Para Adelmo Genro, do ponto de vista epistemológico, o lead é o organizador da singularidade e a pirâmide da notícia deve ficar em pé, porque a notícia caminha do singular para o particular, ou seja, do cume para base.

Há um grau mínimo de conhecimento objetivo que deve ser proporcionado pela significação do singular (pelo singular-significante), que exige um mínimo de contextualização do particular, para que a notícia se realize efetivamente como forma de conhecimento. A partir dessa relação minimamente harmônica entre o singular e o particular, a notícia poderá - dependendo de sua abordagem ideológica - tornar-se uma apreensão crítica da realidade (GENRO, 2012, p.202).
Na introdução da obra, Genro lembra da tentativa de sistematizar o campo jornalístico do alemão Otto Groth, que de 1910 a 1965 escreveu seis volumes sobre o que chamou de “ciência jornalística”. Com destaque para as conclusões de que os jornais são a manifestação e materialização da ideia que o consubstancia, pois comunica bens materiais que pertencem ao imaginário dos leitores; assim como a função social de ir além da mediação, mas de promover uma reciprocidade entre jornalistas, empresas e público.

Para Adelmo Genro, Groth isolou as quatro características principais do jornalismo - periodicidade, universalidade, atualidade e difusão -, que formam a dimensão estrutural do fenômeno jornalístico, mas ainda não conseguiu caracterizar sua essência. Para chegar à uma camada mais profunda, separa o objeto teórico do objeto real (manifestação fenomênica), ressaltando que o real não aparece imediatamente em sua concreticidade, mas após uma síntese das muitas consignações. Seria o que chama de “concreto pensado” a partir da primeira manifestação visível, por meio de outras categorias emprestadas do universo filosófico: singular, particular e universal.

Escrita em meados de 1986, a teoria de Genro se fortaleceu aos poucos em uma corrente de pensamento que avalia o jornalismo em uma constante negociação entre o ideológico e o capital: “a notícia é uma mercadoria, mas não é uma mercadoria qualquer” (GENRO, 2012, p.23). Então, parte de dois princípios: é um conhecimento diferenciado e está tensionado por polos ideológicos antagônicos.

O livro faz uma análise sobre o funcionalismo, quando apresenta a visão de Èmile Dürkheim e da Escola de Chicago a partir do dogma da objetividade, empirismo e análises isoladas do contexto histórico e social. Põe em contexto a ascensão burguesa e surgimento do capitalismo, quando o jornalismo surge moldado pela demanda de uma sociedade em complexificação. As cidades se desenvolvem e cresce com elas a necessidade de informação aos indivíduos agora fisicamente distantes. Formou-se um mercado para a notícia que se torna um produto industrial. Aponta como uma visão simplista, descritiva, reducionista do jornalismo e sua relação com a sociedade é apreendida sob dois pontos de vista: como instrumento de dominação ideológica da burguesia e como controlador da ordem social estabelecida.

Os fenômenos imediatos e acontecimentos não eram percebidos na dimensão do seu sentido aberto e indeterminado. Essa ambiguidade da informação jornalística, que apresenta o passado como se fosse presente e reproduz um fato a partir de mediações técnicas e fontes humanas, não é, na perspectiva de Genro, um “produto maquiavélico do interesse burguês”. Aponta, realmente, uma possibilidade de manipulação, mas condicionado à uma “relação tensa entre o objetivo e o subjetivo” inerente à notícia. E critica o “curto fôlego” de Durkheim que não responde sobre as características assumidas pelo jornalismo na organização da informação e estrutura da linguagem, em sua perspectiva historicamente mais ampla. “Ficam obscurecidas as contradições: sua inclusão na luta de classes e os limites e possibilidades que daí decorrem” (GENRO, 2012, p. 34).

Embora o jornalismo expresse e reproduza a visão burguesa do mundo, ele possui características próprias enquanto forma de conhecimento social e ultrapassa, por sua potencialidade histórica concretamente colocada, a mera funcionalidade ao sistema capitalista (GENRO, 2012, p. 42)
O autor critica o mito da objetividade jornalística porque sempre há uma interpretação subjetivando a narrativa, pois fato jornalístico é também um fato social que envolve escolhas éticas e ideológicas. Esta mitologia é sustentada pelo pragmatismo de grande parte dos profissionais sem acúmulo teórico sobre as técnicas jornalísticas e, mesmo assim, produziram manuais com experiências práticas e disseminaram essas práxis insolente e prosaica. E passa em revista os manuais de John Hohenberg (1962), Fraser Bond (1954), Luiz Amaral (1969) e Clovis Rossi (1984). Destacando funções, valores, deveres, critérios de noticiabilidade, características e, principalmente, o dogma da objetividade.

Erick Neveu (2006), anos depois, ao descrever o campo do jornalismo francês, faz observação semelhante a respeito dos pesquisadores. Os analistas da profissão seriam os próprios jornalistas que, evoluídos intelectualmente pós anos 1980 quando Genro teceu sua análise, já adquirem um certo acúmulo teórico, mas ainda fazem uma teoria auto referenciada de suas práticas, livros de testemunhos das estrelas da profissão, textos que frequentemente contribuem para uma “visão encantada” do jornalismo. Perpetuando mitologias profissionais como a imprensa livre, o quarto poder, valores de transparência, ou seja, o jornalismo visto como uma profissão que é peça-chave da democracia. Jornalismo como promotor de democracia, por exemplo, tem atualmente em Michael Schudson (2010), seu maior defensor.

Forma de conhecimento

O ponto central do livro é o jornalismo como forma de conhecimento, porque não é ciência reconhecida. Tenta explicar a teoria a partir da visão de Roberto Park, no ensaio “A notícia como forma de conhecimento” (1940), que definiu o jornalismo entre algo entre um conhecimento por instinto e intuição (aquaintance with) e um conhecimento metodológico e estruturado (knowledge about), seria o saber de algo acerca de um fato (knowledge of). “Esse tipo de conhecimento se situaria a meio caminho entre a familiaridade com as coisas e o conhecimento formal, racional e sistemático” (BERGANZA-CONDE, 2008, p.25). Ressalta-se que Park entendia o jornalismo como um organismo vivo afundado em um processo continuado de acomodação às necessidades das pessoas na sociedade que crescia e urbanizava-se incessantemente (BERGANZA-CONDE, 2008).

Para Adelmo Genro, porém, a concepção de Park é limitada e conservadora e não consegue ir além da função orgânica da notícia, uma vez que o jornalismo teria um papel desalienante e humanizador, mas sua compreensão é de um jornalismo para controle social. A concepção de conhecimento empregada por Park de “conhecimento de trato” reduz o conhecimento a partir das notícias, porque este grau de conhecimento estaria ligado a reproduzir e reforçar a dinâmica social vigente.

O jornalismo não seria somente um grau, mas um gênero de conhecimento cujo aspecto central “é a apropriação do real pela via da singularidade” (2012, p. 52). Park dizia ainda que o conhecimento do jornalismo teria para a sociedade a mesma função que a percepção para o indivíduo. Genro discorda ao distinguir as dimensões. Considera a imediaticidade do real ponto de partida para o indivíduo, porém, para o jornalismo, a imediaticidade seria o ponto de chegada a partir do qual os meios reconstroem a realidade.

Conclui, desta forma, que há uma diferença fundamental entre estes tipos de conhecimento. A informação jornalística aborda o fato pela singularidade e a científica pela universalidade. Uma singularidade que também a distingue da arte, que cristaliza o particular. “É a dimensão objetiva da singularidade que diferencia o jornalismo da arte” (GENRO, 2012, p.61). Ela é volátil, contextual, de importância ideologicamente atribuída aos fatos significativos, portanto, afirma a existência da dimensão subjetiva na práxis jornalística feita por seres pensantes.

Passando em revista as teorias existentes, chega à Teoria dos Sistemas, que nasceu logo após à dialética, como redutor do papel do sujeito relegando-o a um mero componente dentro de um sistema, que chama de ‘sistemismo’. Genro critica a falta de proposta de ruptura e, apesar de entender que os fenômenos são complexos, multidimensionais, variáveis e irreguláveis, ainda assim acredita no controle possível a partir de leis gerais dos sistemas. À luz da visão marxista, de que a sociedade é resultado da práxis, aponta uma diferença entre a natureza dos homens (agentes autoconstrutores/ sujeitos históricos) e a natureza em si, e conclui que o sistemismo é útil ao capitalismo ao referendar a dominação burguesa como parte deste sistema. Destaca a totalidade dialética das contradições na sociedade que possibilitam diferentes formas de ações e transformações e, assim, não caberia ser avaliada nos modelos cibernéticos. Os projetos humanos são condicionados pela realidade social e não são determinados como entende a Teoria Cibernética. O que explica o mundo é a práxis.

A dialética da quantidade-qualidade é outra fragilidade apontada. Enquanto a Teoria da Informação oriunda do sistemismo valoriza o grau de imprevisibilidade, porque maior será o destaque dado pelos jornais, a quantidade seria determinante. No jornalismo, a relevância social do fato o torna mais importante do que a sua singularidade, ou seja, a relação do jornalismo seria mais forte com a qualidade. Por isso, o singular é a substância do jornalismo e o critério de notícia vai depender da universalidade que ele expressar. “O singular, portanto, é a forma do jornalismo e não seu conteúdo” (GENRO, 2012, p.80). Os acontecimentos previsíveis (mas não determinados em sua forma e conteúdo), pois estes acontecimentos estariam dentro de um contexto de significação histórica.

Destaca o pensamento de Camilo Taufic (1974), como uma das poucas tentativas de discutir o jornalismo numa perspectiva crítica e anticapitalista a partir dos conceitos da Cibernética, outra teoria sistêmica. A crítica mais feroz está no fato de que as funções que o jornalismo cumpre nas “reprodução e manutenção do sistema” são, na verdade, definidas pelas classes dominantes. O jornalismo não pode ser considerado por hipóteses que extingam a reflexão sobre o conceito de verdade e substituí-lo por pressupostos em torno de um controle e organização do sistema social.  Genro enfatiza que a ideia de autoconstrução, práxis e homem sujeito da história, próprios do marxismo, não podem ser abandonadas pelas ideias de sistemas de informação ou homem como parte de um sistema passível de manipulação e controle.

Em última análise, as possibilidades de manipulação proporcionadas pelos meios de comunicação de massa, são tão significativas quanto as potencialidades de desalienação e de autoconstrução consciente se tais meios forem pensados numa perspectiva revolucionária e efetivamente socialista (GENRO, 2012, p. 90)

Ao chegar a Escola Crítica, representada pelos marxistas de Frankfurt, Genro não se identifica ou se acomoda às análises, destacando que um único conceito, não dá conta de toda uma sociedade. Vai no cerne do conceito ‘indústria cultural’, e afirma que essa fragmentação “radical e irresistível” é um grave problema teórico pois a cultura é feita pela práxis dos seres sociais e não pode ser manipulada pelo capitalismo como dizem os teóricos críticos, como Adorno e Horkheimer, pois deixaria de ser cultura. Da mesma forma, não se pode reduzir o jornalismo a um fenômeno mercantil, alienado, porque é também é feito em um contexto histórico.

Chama a atenção para Enzensberger e Benjamin que reconhecem as potencialidades artísticas e políticas da Indústria Cultural, apesar de destacarem o papel que desempenha na manutenção da hegemonia ideológica. Para Genro, dois fenômenos sustentam as contradições geradas na cultura: o potencial “socializante e democrático” das novas tecnologias da comunicação; e a lógica mercantil que reproduz também obras de potencial crítico e transformador. O jornalismo, contudo, não seria crítico, revolucionário e desalienador como desejavam os frankfurtianos porque, para Genro, deixaria de ser jornalismo e teria que ser outra coisa.

Habermas recebe destaque nesta escola porque, para o autor, entre os teóricos críticos, foi o que mais estudou o jornalismo. Dividiu-o em três fases, sendo a primeira centrada nas informações mercantis, a segunda mais político-literárias voltada para a conquista da esfera pública burguesa e a terceira industrial com retorno aos interesses econômicos, de submissão ao mercado. Nesta última fase, destaca a contradição entre o ‘jornalismo crítico’ e a ‘publicidade jornalística’, assim como as notícias tiveram que se tornar mais úteis, adquirindo valor de uso, para que o espaço publicitário (valor de troca) seja valorizado. Habermans afirma, na perspectiva de Genro, que o mercado criou a necessidade das notícias elaboradas nos padrões modernos ou percebeu as reais necessidades de informação jornalísticas e transformou-as em lucro. E, nesta segunda opção, recebe o apoio do autor em resenha, que não acredita em uma capacidade de orquestração tão organizada do capitalismo.

Nesta perspectiva, afirma que, ao contrário do que Habermans e Marcondes Filho, pregavam, a imprensa pode ultrapassar sua função moldada na produção empresarial, sair da instrumentalização ideológica e assumir um ‘caráter rigorosamente jornalístico’, ou seja, não ser aparelhada por qualquer tendência, burguesa ou proletária. Para Genro, o jornalismo vai além da ideologia burguesa, e até sobrevive a ela, podendo ser instrumentalizado pelo proletariado contanto que se crie mediações e canais adequados para difundir conteúdos sociais, ou seja, dando voz ao povo. Neste ponto, classifica como ingênua a ideia de Mattelart sobre “devolver a palavra ao povo”, pois este não considerou o fato de que as pessoas comuns nunca tiveram acesso a esse tipo de “palavra” que agora se pretende devolver, principalmente no caso os veículos de comunicação de massa. Assim, conclui que a “é a luta pelos espaços no sistema de comunicação de massa e a conquista de veículos tecnicamente avançados” (GENRO, 2012, p.131). Todas essas escolas colocadas, Genro mostra que o reducionismo teórico é o preço a pagar pelo ecletismo de abordagens, pois o jornalismo vai perdendo sua “especificidade e concreticidade histórica”.

Ao discutir a notícia como produto, desfaz a mitologia da objetividade, uma vez que as histórias são contadas a partir de mediações histórico-sociais. Ao mesmo tempo em que ratifica a hegemonia ideológica das classes dominantes que se apresenta nos produtos noticiosos e nas instâncias de produção, principalmente, nos profissionais, incorporadas e invisíveis ao primeiro contato. Este ideal positivista de objetividade preveria um jornalismo autônomos dos sujeitos, e isto não existe. Embora reconheça as vantagens práticas e estratégicas das técnicas, como Gaye Tuchman (ano) e Nilson Lage (2014), este último indicou a mesma tensão “entre as determinações ideológicas e manipulatórias do jornalismo e as potencialidades técnicas que ele desperta, em consonância com as necessidades de informação colocadas pela sociedade moderna” (GENRO, 2012, p.143).

Lead como organizador da singularidade

Ao tratar do jornalismo como ideologia, começa a análise pelo lead, que comporta a “reprodução do real como singular-significativo” por meio de um percurso que sai do abstrato para o concreto. Que, na linguagem filosófica, significa o percurso singular-particular-universal. Para que seja jornalismo, a informação ainda tem que se basear na condição de verdade, porém não se pode transformar essa questão em uma deontologia frágil baseada na neutralidade dos fatos, mas em uma discussão ética para obter um consenso sobre o conceito de honestidade, um acordo sobre o que é verdade. Neste raciocínio tenta compreender a essência do jornalismo, em suas fases de mudanças estruturais e a sedimentação em gêneros, em que reconhece a possibilidade de um jornalismo informativo, não propagandístico ou opinativo, a partir de mudanças a partir das redações. “Isto é, reconhecer a possibilidade e a necessidade de um jornalismo informativo com outro caráter de classe, elaborado a partir de outros pressupostos ideológicos e teóricos, mas cuja missão principal não seja apenas a de propagandear tais pressupostos” (GENRO, 2012, p.150).

Uma das consequências mais graves da visão estreita do papel ideológico do jornalismo, entendido como meio para garantir a cultura hegemônica burguesa, é a legitimação da manipulação informativa, porque minimiza o papel revolucionário de seres sociais. A ‘veracidade’ e o ‘otimismo’ são condições de qualidade da notícia, e os fatos não devem servir só para ilustrar com otimismo um tipo de verdade que se acomode à ideologia hegemônica. “Desse modo, os fatos são apreendidos e relatados jornalisticamente como cenas de um filme do qual já se conhece o final e, portanto, portadores de um conteúdo integralmente constituído e indiscutível” (GENRO, 2012, p.157).

Genro aponta que o ‘objetivismo’ e o ‘cientificismo’ são utilizados para renúncia da crítica, sendo o primeiro reprodutor da ideologia burguesa e o segundo, de uma ideologia normativa que manipula cientificamente aspectos e momentos da realidade em prol de uma ideia pré-concebida de sociedade. O autor lembra aí Althusser (1980) e o conceito de aparelhos ideológicos de Estado, que daria ‘correias ideológicas da reprodução social’. Perdem-se, assim, as melhores potencialidades críticas e desalienadoras mais específicas do jornalismo.

Entende-se o jornalismo como uma conjunção de todas estas forças, não submissão integral a estas. Althusser (1980) afirma que as ideologias se manifestam na prática dos sujeitos, ao mesmo tempo em que não têm história própria se constituem e perpetuam em todo o processo de construção da sociedade e que essa perpassa o todo histórico, embora sejam determinadas em última instância pela luta de classes, isto é, "história das sociedades de classes" (ALTHUSSER, 1980, p.75). Assim afirma que "uma ideologia existe sempre num aparelho, e na sua prática ou suas práticas. Esta existência é material (ALTHUSSER, 1980, p.84).

Condições imaginárias de cidadania

A imprensa entendida como aparelho ideológico das classes dominantes pode ser um local de luta de classes, que envolvem elementos internos do campo jornalístico (classe de trabalhadores, patrões e as suas instâncias de poder) assim como tensões que vêm da sociedade, como a demanda do público em resistências aos discursos manipulados e às tensões já inerentes das questões políticas e econômicas impostas pelas classes dominantes. Assim, o poder se manifesta na correlação de forças que tem que administrar para se perpetuar, desta forma, ''nenhuma, classe pode duravelmente deter o poder de Estado sem exercer simultaneamente a sua hegemonia sobre e nos Aparelhos Ideológicos de Estado" (ALTHUSSER, 1980, p. 49). Ou seja, o campo jornalístico vira um nicho importante de conquista ideológica para perpetuação do poder.

Althusser (1980) se vale de Aristóteles para afirmar que a 'matéria se diz em vários sentidos', pois esta existe em diversas modalidades enraizadas em uma matéria física, e cita o exemplo de indivíduos cultivando relações imaginárias que justificam suas relações reais e adota práticas e comportamentos reais neste sentido, assim materializa essa ideologia. Todo sujeito deve agir segundo as suas ideias e práticas profissionais, e inscreve nos atos da sua prática material as suas próprias ideias de sujeito livre. Assim, não há como separar a ação dos sujeitos neste processo de construção da mercadoria notícia.

Genro analisa a relação do jornalismo com o capitalismo que é em si uma relação conflitante. Uma atividade privada legitimada pela defesa do interesse público, embora, na maioria das vezes, esteja operando em prol de interesses ideológicos hegemônicos. Adota a tese que até a metade do século XIX, quando da expansão mundial do capitalismo e a difusão das inovações tecnológicas na comunicação, o jornalismo tinha uma narrativa literária e era instrumento de lutas sociais e políticas. Como a maioria dos estudiosos dos anos 1980, ignorava os registros da tese “Os relatos Jornalísticos”, de Tobias Peucer (1690), na Universidade de Leipzig, na Alemanha, traduzidos do latim em 1990, 2000 e 2004, que já davam conta que na primeira metade do século XVII já existiam relatos jornalísticos frequentes que “são em parte a curiosidade humana e em parte a busca de lucro, tanto da parte dos que confeccionam os periódicos, como da parte daqueles que os comerciam, vendem” (PEUCER, 2004, p17). Ou seja, muito antes das revoluções francesa e industrial já analisavam estes relatos utilizados pela cultura ocidental desde a antiguidade, com a valorização do singular, discutindo autoria, critérios de noticiabilidade, dever da verdade, credibilidade e critérios de publicação. Sem falar nas publicações de fatos banais e notícias falsas para agradar a audiência.

O desconhecimento de Genro não descredibiliza, contudo, que a “ideologia da objetividade” tenha chegado em meados do século XIX com o que denominou de “jornalismo por excelência” e a ideia simplista de que os fatos são sagrados. Acrescenta que na América Latina sempre teve uma dependência informativa, mas, apesar da subordinação aos Estados Unidos em vários aspectos, ainda demorou alguns anos para assumir o novo estilo - inclusive o contraponto sensacionalista - acontecendo apenas com a chegada do rádio. A dinâmica radical do processo informativo ocorreu com o capitalismo e os avanços tecnológicos. Contudo, Genro entende que a cidadania patrocinada pela sociedade burguesa é historicamente real e efetiva, embora não tenha igualdade nem nos aspectos jurídicos-formais e nem nos aspectos concretos devido à exploração e opressão. Dessa forma, o jornalismo informativo se faz necessário porque envolve a contradição entre a cidadania real e a “cidadania potencial” que é constituída pelo capitalismo. “Nesse sentido, o jornalismo desempenha seu papel ideológico de reforçar, também, determinadas condições imaginárias de cidadania, preparando os indivíduos e as classes para adesão ao sistema” (GENRO, 2012, p.180).

Assim, o autor justifica essa ambivalência do jornalismo no conflito que atravessa toda a ideia do jornalismo e autoriza os agentes do campo a pensarem a prática sob uma ótica de classe oposta e antagônica à ótica burguesa, abrindo flancos, inclusive, dentro dos veículos noticiosos controlados pela classe hegemônica. Há uma dupla relação de forças, sendo a luta política interna da redação de um lado e a luta pela influência e controle sobre os meios de comunicação. Contudo, Genro adverte que o assujeitamento do jornalista, que deixou de ser um intelectual, no “sentido adjetivo dessa palavra” para ser um trabalhador especializado, sem personalidade e tem feito a classe perder status, no caso, poder no campo de disputa.

Por fim, aconselha aos profissionais ações que podem destacar o “potencial desalienador”, crítico e revolucionário da atividade profissional, “insubstituível para a construção de uma sociedade sem classes” (GENRO, 2012, p.188). Respeitar a hierarquia objetiva dos fenômenos jornalísticos, pondo em evidências as contradições da hegemonia da ideologia dominante, reproduzir visões diferenciadas sobre os fenômenos sociais, lutar por um controle mais estrito e ideologicamente mais cuidadoso dos meios de comunicações e das informações elaboradas por estes meios.

 E como já vislumbrasse uma tecnologia de comunicação revolucionária como a internet e suas alterações históricas dos sentidos humanos, uma ampliação e aprofundamento da percepção e das possibilidades do conhecimento em geral, alerta para o papel, e principalmente potencialidades, dos outros veículos de comunicação além da televisão com seu sistema jornalístico predominantemente hegemônico, imediatista, e a sua potencialidade de singularização. Sugere ainda aos consumidores de notícias, a participação na luta de classes para identificar os interesses, confrontar abordagens dos meios para que se revelem os sujeitos políticos e sociais, relacionar o discurso editorial e a realidade e detectar suas contradições e criar consciência política e teórica de que a informação jornalística não é objetiva, imparcial ou neutra.

Adelmo Genro faleceu com apenas 36 anos. Neste curto tempo, foi jornalista e vereador no Rio Grande do Sul, e professor da Universidade de Santa Catarina (UFSC).  Entre 1984 e1986 cursou também o mestrado em Ciências Sociais e já na dissertação nos presenteia com esta obra que agora resenhamos. Depois disso, foram dois anos de intensa produção - sete livros e dezenas de artigos em jornais e revistas – que alimenta gerações de pesquisadores há 28 anos. Adelmo Genro não era um pesquisador, mas não era um pesquisador qualquer.

[1]. Adriana Santiago, doutoranda e mestre pelo Programa de Comunicação e Culturas Contemporâneas (Poscom), da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professora da Universidade de Fortaleza (Unifor)

Bibliografia

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de estado. Lisboa: Editorial Presença; São Paulo: Martins Fontes, 3.ed. 1980. 

BERGANZA CONDE, Maria. A contribuição de Robert Ezra Park. In: BERGER, C.;MAROCCO, B. (org.). A era glacial do jornalismo. Porto Alegre/RS: Sulina, 2008, p.15-32. v.2.
NEVEU, Érik. Sociologia do jornalismo. São Paulo: Loyola, 2006.

PEUCER, Tobias. Os Relatos Jornalísticos. Estudos em Jornalismo e Mídia, Florianópolis, v. 1, n. 2, p. 13-30, jan. 2004. ISSN 1984-6924. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/view/2070>.  Acesso em: 23 jan. 2016. 

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